MULHER
Desculpa mandar áudio, mas você não apareceu ontem à noite e eu abri uma garrafa de vinho e aí eu tava, tipo, degustando o vinho, e uma hora eu passei a lingua no céu da boca e tinha uma bolha. Até pensei: ué, será que eu queimei o céu da boca com a comida? Mas lembrei que eu não tinha jantado, a gente tinha ficado de jantar juntos, lembra?, e você não apareceu. Aí fui examinar a bolha com o espelhinho de maquiagem. Horror, horror! Uma bolha de sangue! Uma bolha de sangue, Evaldo! Aí eu já não conseguia mais fechar a boca, minha língua não parava de cutucar, de cercar a bolha, de testar a resistência daquele corpo estranho. Uma bolha enorme.
Eu entrei no Google e digitei: “bolha”. Aí milhares de citações, né, tudo muito confuso, um monte de teorias sobre redes sociais e isolamento. Aí eu acrescentei “bolha de sangue no céu da boca” e a pesquisa se refinou para três artigos de medicina e um blog de poesia (um tanto quanto decalcado em Augusto dos Anjos, mas bem inferior).
Enfim, quatro horas depois, eu estava entre um Hemangioma Cavernoso, que é um câncer bucal em fase intermediária, ou – pior! – uma doença autoimune que eu encontrei na Wikipedia, com um nome muito sugestivo – diria até poético – : “Fogo Selvagem”. Essa doença começa com uma bolha de sangue, geralmente na mucosa do céu da boca, e depois se espalha por toda a pele, até que a pessoa fica coberta de bolhas e mais bolhas de sangue, “até a hemorragia e à morte consequente”, dizia o artigo.
Como alguém pode falar em “morte consequente”, quando a morte é causada por uma bolha? Morrer de bolha é uma inconsequência, isso sim!
Passei a noite em claro, olhando pra rua com a luz apagada, com inveja dos que dormiam e dos que acordavam às quatro da manhã e vinham dentro dos ônibus, todos ignorantes da sua finitude iminente. Quando a luz do dia invadiu o quarto eu decidi me vestir e revirei o armário: “que coisa mais triste, morrer sem nem um vestido vermelho!”
Enfim, em circunstâncias normais eu iria para o pronto-socorro, mas não estamos em circunstâncias normais. Esperei dar oito horas pra ligar para o atendimento do convênio e enquanto isso na minha janela umas maritacas estavam se divertindo na última árvore que sobrou na minha rua, porque as outras foram todas derrubadas por causa das obras, você sabe que estão subindo três prédios ao mesmo tempo aqui na minha quadra e o barulho começa às sete e meia, né? Enfim, a árvore é um ipê amarelo que está completamente carregado de flores. Chega a ser uma afronta, o ipê floresce alheio às obras, alheio à pandemia e as maritacas vão e vem ignorando toda a mesquinharia humana de medos, angústia e placas de rodízio.
- E eu, morrendo! Ninguém se importa comigo?
No telefone eu descrevi minha bolha pra o robô do convênio, aí digitei meu CPF, meu número de carteirinha, aí digitei 9, depois 9 de novo, aí descrevi minha bolha pra atendente, aí ela me deu outro número, eu digitei 9, depois 9 de novo, descrevi minha bolha pra atendente da emergência e depois pra atendente da triagem, que disse que no momento não aconselhava o atendimento presencial, mas que eu podia anotar um protocolo. Às nove e quinze eu estava um pouco mais cansada, um pouco mais ridícula e um pouco mais sozinha, com um protocolo anotado na agenda. Foi a hora que você me mandou mensagem.
Eu visualizei mas não respondi na hora. Mas não foi retaliação, Evaldo. A gente tinha ficado de jantar juntos ontem e eu sei que furar uma videochamada não é tão sério, afinal, eu estava em casa, você não me deixou sozinha em um lugar estranho, mas você me deixou esperando, mesmo assim. Você esqueceu, ok, acontece, nestes tempos eu também esqueço que dia é hoje, me confundo com as horas – mas algumas coisas eu não esqueço. A gente tinha marcado de jantar juntos, lembra? Mas você não lembrou.
E eu pensei que se eu respondesse a sua mensagem naquela hora e você me deixasse de novo na espera, seria insuportável. Eu não aguento mais esperar e terminar falando com o robô do convênio! Então eu queria te dizer uma coisa, Evaldo. Anota aí o número do protocolo: VAI À MERDA.
Desculpa. A bolha estourou – do nada – agora há pouco, enquanto eu estava surtando. Saiu um pouco de sangue, uma sensação quase de alívio, agora eu senti que o céu da boca está lisinho de novo. E aí eu pensei: eu sobrevivi. Ou uma parte, a maior parte de mim, sobreviveu. Que partes de mim vão sobreviver intactas ao longo da minha existência? E que afetos, que desejos, que ilusões eu vou ter que deixar ir? É pra se pensar, né?
Enfim, não se preocupe comigo, Evaldo. Estou aqui na janela vendo as maritacas no ipê. Desculpa o áudio longo. Um beijo.
este texto foi escrito durante o período de isolamento social, no inicio da pandemia de coronavirus, em 2020, para um curta-metragem produzido, dirigido e protagonizado por Nicole Marangoni.
O curta venceu o Critics Choice Award do Festival Internacional DMOFF 2020
Assista aqui: BOLHA - um curta de Nicole Marangoni
Muito bom!!!!!!!