De Quatro – entre o desejo e o que realmente importa
li o livro da Miranda July que todo mundo me disse que era para ler
Terminei de ler De Quatro, o romance de Miranda July alardeado como ‘indispensável’ pela crítica literária, também chamado de “o livro inaugural do gênero ‘romance estrogênico’”. Esse novo gênero se distinguiria do que chamaríamos de “livro de mulherzinha” ao reconhecer o papel fundamental dos hormônios como propulsores de decisões questionáveis. Mas este é só um rebranding para as prateleiras, que não interessa aqui.
De Quatro é um livro de mulherzinha tanto como Complexo de Portnoy é um livro de hómi. É um portal para a cabeça de outra pessoa - e nada como entrar na cabeça de outra pessoa para ver o mundo sob outro ponto de vista. E este portal em questão oferece uma vista especialmente intrigante.
Sim, o livro aborda diretamente a questão da crise hormonal da perimenopausa (os anos que antecedem a menopausa, quando a produção de hormônios ovarianos começa a ficar irregular, provocando insônia, depressão, oscilações de humor e de libido, ondas de calor, ressecamento vaginal, perda óssea, barba, bigode, catarata, um show de horrores). Esta crise é o elemento propulsor para a ação do romance.
Desconfortável dentro da própria vida aparentemente perfeita (marido legal, filho/a legal, carreira decolando), a Protagonista começa a perceber que está se sentindo mais esquisita e sensível do que o usual; ao visitar a ginecologista, recebe a notícia de que está na perimenopausa e – a partir das pesquisas na internet – deduz que só tem uns três anos de “vida” (leia-se libido) pela frente. Munida desta crença, a Protagonista decide que precisa “viver tudo antes que acabe”, colocando em xeque tudo o que construiu para estragar tudo “encontrar a verdade”.
(Num determinado momento, ela diz algo como: “tenho pouco tempo de vida antes de morrer pelos próximos 45 anos”.)
capa da edição norte-americana
Acompanhar a saga da Protagonista é fascinante (na medida que é fascinante ver uma pessoa tentar dar banho num gato de rua ou espremer uma espinha gigante). Ela é tão honesta em seu absoluto solipsismo que nem dá raiva, só um pouco de constrangimento e, em alguns momentos, simpatia genuína. Como uma mulher que já se deparou com a perimenopausa e suas indignidades, eu identifico a urgência da Protagonista como algo real e necessário (eu também tive certeza de que iria morrer com 50 anos. Mas no meu caso, os meus 50 anos coincidiram com o ano I da pandemia, então foi uma espécie de reavaliação coletiva, mas essa é outra história). O que me interessou, ao ler o livro, foi observar a Protagonista navegar entre o que é desejo e o que é vital.
Não vou ficar falando do que acontece, pra não estragar o livro pra vocês.
A questão é que acontece MUITA COISA e a Protagonista apronta MUITO.
Mas quem me realmente me cativou foi uma personagem meramente funcional na trama: a melhor amiga e confidente, Jordi, que é a única pessoa que acompanha absolutamente tudo o que a Protagonista pensa e faz. Jordi responde mensagens de madrugada com palavras de apoio compreensivas. Vê a amiga brincar com a sorte, ou, como naquele jogo da cabine do Silvio Santos, trocar uma bicicleta caloi novinha por uma chupeta suja de areia. Jordi acompanha as escolhas da amiga e não julga. No máximo, quando a merda vai pra todo lado, ela diz “ôh, miga...”.
A existência da Jordi no livro foi fundamental para que eu seguisse lendo, mesmo quando a Protagonista testava a minha paciência. Ela é a melhor amiga que alguém poderia querer: alguém que oferece as melhores palavras, mesmo quando a outra pessoa está em uma tournée indefensável. Ao mesmo tempo, não é uma amiga apática, que adula e concorda com tudo, ela exerce um afeto ativo, escuta de verdade, responde de verdade com o que tem de melhor para dar.
Se este livro me provocou algum questionamento foi: será que eu saberia ser uma amiga tão boa?
De Quatro foi um desafio interessante, que me convidou a ser essa pessoa que não julga, só observa e acolhe, pelo tempo que passei lendo. Li que ele provocou alguns movimentos interessantes entre leitoras, mulheres que criaram grupos para discutir os efeitos da menopausa em suas vidas, grupos de “código aberto”, como a protagonista chama no livro. Só por conta disso, já tem seu grande mérito. Mas ele vai além ao discutir o desejo como necessidade básica, mesmo quando já se tem tudo o que deseja.
Uma nota à edição brasileira: talvez o lançamento tenha cumprido um prazo apertado, pra aproveitar o sucesso no exterior, mas o fato é que na revisão passaram alguns erros feios, tipo sintaxe zoada, a ponto de ser preciso reler alguns trechos algumas vezes pra entendê-los. Foi meio leitura com obstáculos. Mancada. Se puderem ler no original, acho que é uma boa.
Faixa-bônus: Tomorrow, and Tomorrow, and Tomorrow
este livro é muito legal!
Outro livro que li recentemente foi Tomorrow, and Tomorrow, and Tomorrow, da Gabrielle Zevin, e achei tremendamente divertido. Um novelão de alto nível, com personagens apaixonantes e muitas revelações e reviravoltas. A premissa: após um período de ruptura, dois amigos de infância se reencontram e começam a criar videogames juntos. Eu amei e você também vai amar. Sim, bem você, mesmo.