A Primeira Lei da Termodinâmica diz que a energia não pode ser destruída nem criada, somente transformada. Partindo do princípio de que absolutamente toda matéria é composta de energia, nada pode surgir do nada, nem desaparecer por completo. Tudo vem de algum lugar e vai para outro, de uma forma, ou de outra.
Eu tenho uma pergunta:
Pra onde vão as meias que somem na máquina de lavar? Tenho certeza que isso acontece com todo mundo. Você tira a roupa da máquina e ao pendurar para secar, está faltando o pé de uma meia. Para sempre. Você vasculha o cesto, esquadrinha o chão do banheiro. Sumiu. Para mim, essa é a maior prova de que existe um multiverso e em outra dimensão aquela meia virou uma tampa de tupperware.
“Tive um relacionamento que acabou por causa de uma meia”, interrompe Carol.
As histórias que a Carol conta sempre me soam familiares, mas nunca totalmente verdadeiras. Ainda assim, são boas histórias e eu gosto de ouvi-las. Me fazem pensar nas infinitas variantes de uma mesma vida.
“Ele era guitarrista de uma banda que gravava no mesmo estúdio que eu”, ela diz. “No primeiro encontro a gente saiu e conversou até as cinco da manhã. No segundo encontro a gente continuou conversando até o dia amanhecer. Na noite seguinte a gente estava sem voz e finalmente fomos pra cama. E dali em diante, parecia que a vida iria acabar se a gente se separasse.”
Não sei se vocês já sentiram isso. A vontade de entrar debaixo da pele da outra pessoa, um anseio pelo outro que vira uma dor física. Não é saudável, mas acontece. Com a Carol também foi assim:
“A gente se escrevia todo dia. Trocávamos cartas lindíssimas. Levava um ou dois dias pra receber. E aí a gente gravava fitas cassete com as nossas músicas favoritas e mandava pelo correio. Ele era engraçado, bem-humorado, talentoso... Compunha músicas lindas. E quando eu falava pra ele ‘leia esse livro’, ele lia!”
No passado a gente tinha mais tempo, constato. O tempo de ler um livro e comentá-lo com alguém. O tempo de escrever uma carta. O tempo de ler uma carta. O tempo de gravar uma fita cassete. O tempo de ouvir os dois lados de uma fita e ouvir e ouvir de novo antes de comentar o que achou. O que aconteceu com o tempo que não temos mais?
Carol ignora minhas divagações e prossegue:
“Lembro que uma noite, após o jantar, nós dois descemos pra rua e ficamos na calçada, olhando o céu, enquanto ele fumava. E ali eu tive uma espécie de epifania, olhando a fumaça se misturar com o céu sem estrelas. Senti que aquela imensidão toda fazia sentido, era como se eu compreendesse o universo, porque eu amava e era amada.”
Ela faz uma pausa dramática, para sinalizar a mudança dos ventos. Suspira profundamente, antes de continuar:
“Mas..”
Mas?
“Ele largava as meias sujas no chão.”, revela Carol e acrescenta, enojada: “Era no banheiro, na sala, no quarto... Em qualquer lugar da casa tinha meias sujas. Eu chamava a atenção para as meias no chão, pedia para ele colocar as meias no cesto de roupa suja. Ele, nada. E eu juntava as meias do chão. Um dia eu reclamei de forma mais dura e ele se ressentiu ‘porque eu fui grossa’. Pedi desculpas. E continuei a juntar as meias do chão. Eu falei sobre as meias num momento tranquilo e ele disse que eu estava procurando um conflito porque a nossa vida era muito perfeita. E eu continuei a juntar as meias do chão. Até que um dia eu chorei por causa das meias no chão. Ele disse que não acreditava que eu pudesse me apegar a algo tão pequeno. Eu disse que era importante para mim que ele juntasse as próprias meias e ele disse que eu estava exigindo que ele fosse outra pessoa. Então eu passei a jogar no lixo as meias que eu encontrava no chão. Em duas semanas ele ficou sem nenhuma meia para usar. Quando ele entendeu o que aconteceu, ficou puto e saiu de casa.”
E foi assim que vocês se separaram?
“Não. Quer dizer, sim, mas depois de um mês ele voltou e me pediu em casamento.”
Por que a gente faz isso?, questiono. A gente acha que vai consertar o sentimento com um anel e uma festa para duzentas pessoas? Para onde vai a frustração varrida para baixo do tapete, quando não há tapete?
Ok, parei, Carol, pode continuar.
“A festa foi linda”, ela conta. “Nos casamos num bosquinho cheio de vagalumes, ao entardecer. Ele disse um poema lindo. Eu chorei. Todo mundo chorou. A lua se alinhou com um cipreste à beira do lago e fez umas sombras mágicas na água. Acho que eu estava bem louca de uma flor de haxixe que eu fumei, mas parecia que um portal tinha se aberto. Uma nova vida!”
“A gente não podia tirar férias, então a lua de mel foi na cidade, mesmo”, continua Carol. “Nossos amigos nos deram de presente um final de semana num hotel cinco estrelas. Nossa suíte era maior que nosso apartamento inteiro. Uma sacada enorme com piscina aquecida, a cama era do tamanho de um iate, o banheiro era tão grande que tinha cômodos, as poltronas eram cobertas com mantas de lã finíssimas, perfumadas, a mesinha tinha um arranjo floral deslumbrante e duas taças de champanhe com lacinhos dourados nas hastes, em cima da cama tinha dois robes de seda e uma caixa de bombons. Eu entrei no quarto, vesti o robe, peguei uma taça de champagne e quando voltei pra sala... tinha um par de meias sujas no chão.”
A Segunda Lei da Termodinâmica estabelece que a entropia – a desorganização de um sistema – sempre aumenta e nunca diminui; o que quer dizer que um vaso que cai do alto de uma mesa e se parte em vários pedaços não pode se reconstruir sozinho ou fazer a trajetória contrária para o alto da mesa. Essa irreversibilidade é que determina a direção da flecha do tempo. No passado, o vaso estava intacto. No presente, o vaso é um monte de cacos, água derramada, flores pelo chão. É impossível que o mesmo vaso volte a existir intacto no futuro.
Pergunto se Carol e o ex-marido ainda se falam. Ela diz que não, que ele ficou magoado e até hoje se refere a ela como “aquela maluca”. Carol sabe que foi amor verdadeiro, porque a gente sabe quando é. Mas vasculha e não encontra nem cacos do antigo sentimento.
Em compensação, outro dia, ela encontrou uma tampa de tupperware sobrando na gaveta.
Amo sua escrita. Degusto, com muito prazer, obrigada!!
(:
Pobre Carol...
Briagadu, Anna.