Não Se Vê Patavina
Curitiba é apenas um assovio com dois dedos na língua (Dalton Trevisan)
Em 2024, fui convidada a escrever um espetáculo teatral para a cidade de Curitiba. O curioso é que não sabiam que eu era curitibana! Há quase 25 anos, quando saí da capital paranaense, eu era uma atriz/cantora em busca de novas oportunidades de trabalho. De lá para cá, fui acrescentando atividades no meu currículo, até virar uma espécie de referência na subcategoria (ou nicho, se preferirem) de “autores de teatro musical”. Conhecendo a complexa autoestima da classe artística local, acredito que, se soubessem que eu cresci nos corredores do Teatro Guaíra, talvez os produtores tivessem procurado uma autora de origem mais relevante. Mas me convidaram e eu aceitei. E escrevi uma peça (amorosa) sobre essa cidade estranha, a “Cidade Sorriso” onde vizinhos não se cumprimentam no elevador. Para isso, precisei re-enxergar a cidade, num processo quase terapêutico de criar memórias novas num território já povoado de sentimentos.
No entanto, o texto de hoje é sobre o que não está mais lá.
Não se vê patavina*
“Curitiba é apenas um assovio com dois dedos na língua” (Dalton Trevisan) **
Quase não havia luzes naquele trecho da cidade. A rua Vicente Machado trazia o ônibus, pelo asfalto, até o ponto final. Dali, os caminhos seguiam por ruazinhas de brita ou terra. Nossa casa ficava no final de uma destas ruas, cercada de mato por três lados. Uma casinha amarela, de madeira, com um porão e uma varanda. No quintal, crescia um pinheiro e, mais adiante, perto do portão da frente, pendia um balanço vermelho igual ao da praça.
O trajeto do ponto de ônibus até a casa era escuro e quieto. Não havia muita vizinhança. A casa amarela despontava solitária nuns cento e tantos metros iluminados por um único poste. A Lua me acompanhava na volta para casa: ora rápida e dissimulada, ora encarando-me de volta, imóvel. Também havia uma galinha que, uma vez só, extraviada de algum quintal, atacou-me as canelas enquanto eu voltava da escola.
Para espantar os caçadores de passarinhos que vinham bater nos matos vizinhos, minha mãe colocava as caixas de som nas janelas e tocava música, bem alto. Jamais apurou-se a eficiência do método, mas era divertidíssimo. Uma vez, alguém pôs fogo no mato ao lado da casa e precisaram chamar os bombeiros. Depois começaram a construir em volta e hoje aquela região toda virou um condomínio.
Antes havia mais estrelas.
Nos fundos da casa, a bicicleta descansava junto a dois abacateiros, um pé de caqui, uma pitangueira e limoeiros jamais recenseados. Os gatos variavam: de dois a sete, dependendo do frio. No inverno a casa recendia a pinhão cozido. Minha mãe atravessava as madrugadas lendo na mesa da cozinha, enquanto quebrava nozes com um martelo. Meu irmão, piá, passava o dia na escola e as noites comigo que, já adolescente, não adorava a ideia, mas também não tinha nada melhor para fazer. Quando eu ficava aborrecida, ia até a esquina para telefonar. Depois das oito da noite era só uma ficha.
Final de semana, meu irmão arrumava uma mochila com o macaco de pano, o caderno e alguns lápis de cor e sentava nos degraus da frente de casa, para esperar o pai, que costumava não vir. A mãe fechava-se no banheiro. Eu ia até a esquina. Sábado e domingo era uma ficha só.
Antes havia mais estrelas. Ou a minha memória rearranjou o céu de Curitiba a seu gosto e amor. Antes havia a minha avó e havia a Biblioteca Pública e a pastelaria em frente à Biblioteca, de onde, uma vez, saí sem pagar e passei um mês com medo de ser presa. Havia as casas de madeira coloridas com os lambrequins, antes que eu soubesse o nome deles e sentisse sua falta. Havia os enfeites de Natal com pinhas e fitas acetinadas. E as luzes de Natal eram caras e, por isto mesmo, usadas com parcimônia. Fazia frio no inverno, muito frio (ou eram as casas de madeira que nos guardavam menos dos ventos?). Antes havia mais estrelas e sempre alguém tinha tempo para me dizer o nome delas. Antes éramos crianças, éramos adolescentes, éramos jovens apaixonados, éramos adultos reincidentes, profissionais ambiciosos, antigos amantes pagando cafés uns pros outros e nos pedindo desculpas pelo passado. Antes eu vivia aqui.
A Curitiba de Dalton Trevisan já não existia quando nasci. A Curitiba da qual falo extingue-se um pouco cada vez que tento contemplá-la e ressurge brilhante quando não estou olhando. Apreender uma cidade é tentar enxergar o céu através das luzes ofuscantes. Olhar para o que não é mais, reconhecer um lugar pelo que deixou de existir ali, ver através da ilusão e tentar perceber o que há hoje - o que sou hoje. O que existe e o que eu imagino? O que está ali e o que é lembrança? A minha cidade é um truque de mágica, está ali e não está. O que não enxergo, no entanto, ainda me ilumina.
* o título deste texto é uma referência ao conto “Os Anos-Luz”, do livro “As Cosmicômicas”, de Ítalo Calvino, de onde vieram alguns conceitos, também.
** frase do conto “Curitiba Revisitada”, do livro “Dinorá”, de Dalton Trevisan.
***imagens: mural de Poty Lazarotto e desenho de Eliana Del Bianco (araucária)
Este texto é dedicado à Nara (Assionara Souza), que segue nos iluminando.
Ai, que lindo Anna! Tão bom te ler. Me faz tão bem. Obrigada 🌹
Que texto incrível, Anna!!! Somos iluminados pelo que já não se vê. Obrigada!!!!!