Outro dia procurei uma foto quase antiga no meu celular. É uma foto quase antiga porque já tem mais de dez anos, mas é da era digital. Ou seja, ela deveria estar armazenada na minha nuvem. Digo “deveria”, porque a foto sumiu. Eu procurei por local, procurei por data, nada. Depois de procurá-la em todas as nuvens possíveis (uso iCloud, Google Drive e Dropbox) encontrei-a num post do Instagram e fiz um print. Provavelmente, antes de me render a uma mensalidade mais alta para ter espaço de armazenamento na nuvem, eu devo ter acidentalmente apagado a foto original junto com outras das quais sentirei falta um dia. Em compensação, ainda tenho algumas dezenas de fotos quase iguais do meu gato rolando com a barriga para cima.
Lendo as notícias, tento acompanhar o novo jogo da política internacional, cujas regras parecem tão confiáveis quanto a previsão do tempo em São Paulo. Aprendi uma palavra nova:“counter tariff”, ou tarifa retaliatória. A versão atualizada do jogo WAR terá que vir com uma calculadora (“seus 35% mais 57% ...”).
Mas outro assunto no jornal me impactou mais: o da exploração de água em regiões desérticas por datacenters construídos às dezenas pelo planeta. Já era sabido que estes datacenters utilizam uma quantidade louca de energia (a estimativa é que eles consumam entre 3% a 4% da energia do planeta por hora e esse consumo cresce exponencialmente a cada ano). Esses centros de armazenamento de dados são responsáveis por estocar toda a informação produzida na internet. São eles que mantém a nuvem no ar. Os datacenters tem sido cada vez mais requisitados para a mineração de criptomoedas e desenvolvimento e treinamento de inteligência artificial, além de guardar nossas fotos de gatinhos. Como consomem muita energia, as máquinas precisam ser constantemente resfriadas – e aí entra a água. Muita água para resfriar megacomputadores que trabalham 24/7 em velocidade máxima.
Numa reportagem da semana passada, o jornal inglês The Guardian apontou que muitos datacenters estão sendo construídos em áreas onde a água já é escassa, como regiões desérticas, por exemplo, ameaçando diretamente a sobrevivência das espécies locais (incluindo humanos). Isso porque a umidade do ar nas regiões desérticas é favorável para as máquinas
Sendo uma ficcionista compulsória, meu jeito de lidar com uma notícias destas foi me perder numa trama pós-apocalíptica:
“O ano é 2030. Todas as fontes de energia para sustentar os datacenters se esgotaram. O colapso é inevitável. A guerra agora é pelo espaço de armazenamento de dados. Países pobres cederam suas terras e recursos para grandes corporações construírem seus datacenters, em troca de tarifas mais baixas para seus produtos.
Cada vez mais dependente das máquinas, a civilização vive sob ameaças constantes de um apagão de dados cruciais para o seu funcionamento. Agora, para ter acesso a nuvem, os humanos precisam pagar uma tarifa altíssima, controlada pelo Governo Central, o que faz com que cada vez mais humanos vivam sem ter acesso a suas memórias pessoais. A preservação da memória da humanidade é questão de debates acalorados e, numa determinada altura, a sociedade se divide entre preservacionistas (os que querem preservar a história) e empiristas (favoraveis a apagar as memórias para começar do zero).
É neste cenário que surgem As Nuvens, pessoas especialmente dotadas de boa memória, escolhidas e treinadas pelos preservacionistas para carregar histórias, lembranças, teses, receitas, poemas, tudo o que as máquinas não acham importante, mas os humanos, sim. As Nuvens gozam de privilégios: além de possuirem livros, elas tem o direito de passar até 20h por dia sem tela e tem acesso a frutas e vegetais frescos. Por causa destes privilégios, algumas Nuvens, quando percebem que sua memória está começando a se corromper, disfarçam o problema inventando memórias.
Mas numa cidade arruinada do deserto chileno, alguns moradores se rebelam e invadem um datacenter. É então que” –
Eu só queria encontrar uma foto que tirei com o Paquito de Rivera.
Não há nada de novo no apocalipse. O mundo já anda a passos decididos na direção da insustentabilidade, sem que eu precise imaginar os seus detalhes indignos. Mas talvez eu precise pensar numa história, para poder imaginar alguma saída. É um pouco como a gente acorda de madrugada pensando “e se pegar fogo no apartamento de baixo?” – que é um pensamento completamente inútil às 3 da manhã, mas faz com que no dia seguinte, você talvez reveja as clausulas do seu contrato de aluguel. Ou talvez, pelo menos nesta história de fim do mundo, eu controle a narrativa. É a ilusão que consola a ficcionista, controlar a história.
Enquanto isso, meu gato rola de barriga para cima, aos meus pés. Muito fofo. Vou tirar uma foto pra guardar esse momento.
Obs.: Para você que me sugeriu “por que você não escreve uma série para a [insira aqui seu streaming de preferência]”? Boa ideia, obrigada pela sugestão, vou pensar nela com carinho. Mas enquanto eu não viro uma showrunner de sucesso ou uma Nuvem Portadora das Memórias da Humanidade (o que vier primeiro), você pode compartilhar esta modesta newsletter com a sua amiga/o que também gosta de ler histórias.
Obs. 2: Por via das dúvidas, esse cenário apocalíptico está registrado na (nuvem da) Biblioteca Nacional. Se num futuro vocês lerem um conto ou romance meu com esse plot, já sabem de onde ele veio.
Imprimam as fotos e textos que vocês gostam e boa semana <3
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ADORO!!!!