Quem me conhece sabe que ninguém sabe de nada. Ninguém se conhece, essa é que é a verdade. Pega o figo. Você acha que aquilo é uma fruta, não é. É um sarcófago. Ali dentro morreu uma vespa e os seus restos foram digeridos, transformados em enzimas que criaram aquela bolota roxa que a gente acha linda, sensual e saborosa. Um figo só existe porque uma vespa ficou presa e morreu ali dentro (Duvida? Pesquise “por que veganos não comem figo”).
Mas o figo sabe disso? Supondo que um figo fosse senciente, ele se veria como uma inocente frutinha, ou como um ser cruel que aprisiona, mata e deglute seu polinizador para poder brotar suculento e saboroso? Não sei, fica aí o mote para um próximo filme da Pixar, ou para um novo livro da Han Kan (A Consciência do Figo).
Antes de você cancelar a sobremesa, uma reflexão: Quantas vezes você já não foi um figo? Quantas vezes não matou (simbolicamente, espero) alguma coisa para que outra pudesse emergir?
A gente acredita que sempre foi o que é – isso quando a gente tem alguma vaga ideia do que seja. “Eu sempre fui melancólica”, ou “eu sempre quis ser artista”, ou, o pior de todos, “eu sempre fui assim”. Mas essa é uma grande falácia. A gente se reinventa de maneiras doces e violentas, o tempo todo.
No livro “Tomorrow, and Tomorrow, and Tomorrow”, de Gabrielle Zevin, um dos personagens diz: “Não é uma tristeza, mas sim uma alegria o fato de não fazermos a mesma coisa durante toda a vida”. Quando li essa frase, eu reagi: “isso mesmo!”. Existe uma regra não-escrita de que a nossa trajetória deva seguir uma linha reta e ascendente, mas eu não conheço ninguém que tenha feito esse caminho. O meu, certamente, não é assim.
Não tenho ideia de quais partes minhas eu sacrifiquei, aprisionei, digeri ou assimilei para ser quem sou hoje. Às vezes eu sinto dores de vidas não vividas, como se alguma parte deglutida ainda doesse. Certamente quem me conheceu há muitos anos tem uma ideia diferente a meu respeito, porque eu era diferente mesmo e eles também eram. Todo mundo muda, menos a minha prima Teresinha, que sempre foi uó.
É mais difícil quando quem muda são os amigos. É estranho vê-los se transformando em outra coisa, parece uma pequena traição. “Antes ele/a não era assim” e pior: “A mim ele/a não engana, eu conheço ele/a”. De repente seu amigo está usando outras roupas, andando com outras pessoas em festas que você não entende a graça de ir. Deixados para trás, nos sentimos a vespa que morreu para que um lindo figo pudesse brotar. “Quem ele/a pensa que é?” É doloroso e desconcertante não entender um amigo querido, mas acho que uma das coisas mais gentis que a gente pode fazer é não tentar encaixá-lo onde ele sempre esteve.
Quem me conhece, sabe que estou falando comigo mesma. Mas a maravilha desta vida cheia de simultaneidades é que às vezes a gente é o figo, às vezes é a vespa. E, às vezes, é alguém tentando dar conta das complexas relações humanas através de uma metáfora botânica zoada, enquanto rola os stories do IG.
E, sim, eu ainda como figo.
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que texto lindo! "Não tenho ideia de quais partes minhas eu sacrifiquei, aprisionei, digeri ou assimilei para ser quem sou hoje." lindo, lindo!
não conheço quem nunca tenha sido figo. ou vespa. somos todos complexos. e tou lendo tomorrow and tomorrow and tomorrow por sua causa e amando. porém sinto que só vou ter paz de novo qdo terminar.